Relato de um Tripulante da nau Príncipe Real


A Viagem Infernal

"Posso dizer que foi a época mais perturbada que Lisboa enfrentou. As tropas de Napoleão se aproximando e o príncipe tomou a decisão vital em ultima hora. Viajar para nossa colônia mais rica, o Brasil, foi o pior dia para se navegar uma tempestade castigava a cidade e seu litoral, isso piorou nosso estado de embarcação, pois a maior parte da nobreza e alguns dos criados iria partir deixando o resto da população, antes de embarcar tivemos que vendar o príncipe D. João pelos seus medos de relâmpagos.
Após a confusão do embarque pude ver que escapamos por pouco, a considerada pior tropa de Napoleão ficou para trás no nosso porto. Graças a essa fuga não se tinha a lista precisa de quantas embarcações desembarcaram no dia 29 de novembro de 1807, mas eu tenho certeza que foi mais de 50 caravelas com aproximadamente 15.000 pessoas, alguns navios mercantes e nossa escolta inglesa que acompanhavam o navio Príncipe Real. Então iniciamos nossa grande viajem com poucas provisões e apenas a roupa do corpo.
Partiram todos juntos, mas pela manhã outra tempestade nos castigou separando as embarcações. As tormentas ajudaram ainda mais na situação de mal estar, a maioria de nós não tinha o costume de viajar longas distâncias, então os vômitos eram frequentes. Vi que era isso que os marinheiros quase sempre enfrentavam e posso dizer que não nasci para isso.
No dia 2 de dezembro, João mandou um dos oito navios da vanguarda, Medusa, seguir à frente e chegar ao Rio de Janeiro primeiro, dando tempo ao vice-rei Marcos de Noronha e Brito o Conde dos Arcos, se preparar para o inimaginável. Quando o tempo ficou estável o comandante Smith ordenou que quatro naus britânicas continuassem a escolta, enquanto ele voltava a sua tarefa de combater os franceses. O serviço de bordo era muito precário, a princesa Carlota Joaquina mandava cartas constantes para o príncipe reclamando dos serviços. O mau tempo que se seguiu impediu o reabastecimento na bela Ilha da Madeira e, pior, dividiu a esquadra. Quando se percebeu, o Príncipe Real e o Afonso de Albuquerque, mais suas fragatas de apoio Urânia e Minerva, havia se separado do resto.
Com o tempo mais calmo nossa paciência já estava se esgotando, reclamamos da falta de higiene, da infestação de piolhos e a falta de lugares para dormir, já que boa parte do convés estava sendo ocupado. O príncipe era o único que parecia calmo, ao nos aproximarmos do Cabo Verde ele ordenou que os marinheiros passassem direto, para economizar mais tempo. Em nada surtiu efeito, pois perto do Equador o mar entrou em uma calmaria e os cinco navios passaram a virada de 1807 e 1808 parados. Já em movimento o príncipe regente ordenou ao capitão que nos levasse primeiro a Salvador, na Bahia.
Após grandes ventos 55 dias se passaram e desembarcamos no porto de Salvador com o governador João Saldanha da Gama ocupando o vazio e surpreso por nós nobres estarmos naquele estado mal cuidado. No dia seguinte com todos bem cuidados fomos recebidos devidamente pelo governador e o povo baiano que divertia suas ruas ao som de músicas africanas.
Durante o tempo passado aqui D. João conheceu José da Silva Lisboa, que contribuiu com suas ideias liberais para uma das medidas mais importantes dessa nova fase, a assinatura da carta régia que abre os portos brasileiros às nações amigas e efetivamente suspende o isolamento forçado em que vivemos até agora. A abertura dos portos é uma questão de sobrevivência, com a perda de Portugal, e de boa convivência com os ingleses, que possibilitaram a fuga da família real. Mas também coincide com a causa da liberdade econômica defendida ardorosamente por Lisboa. Dez dias depois continuamos em direção ao Rio de Janeiro e totalizando 99 dias demos fim à nossa viagem infernal


O Príncipe Real, levando o próprio, chega ao Rio de Janeiro: alívio depois de 99 dias de desconforto e ansiedade para milhares de homens, mulheres e crianças, a maioria na primeira viagem.

O London, um dos quatro navios ingleses destacados para escoltar a esquadra portuguesa: na altura da Ilha da Madeira, nevoeiro e separação."

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